Dar pérolas (ou bolotas) a porcos
Anda tão longe das receitas mais confecionadas que é comum ignorarmos a sua existência. A bolota, sobretudo conhecida como alimento de eleição do porco ibérico (também denominado em Portugal como porco preto), foi em tempos idos muito usada na alimentação humana. A sua popularidade enquanto ingrediente foi diminuindo, passando a ser usada quase exclusivamente para alimentar animais, mas a importância cultural, nutricional e gastronómica da bolota é incontestável. Tem até direito a uma celebração “mundial” no dia 10 de novembro, uma iniciativa que nasceu numa escola da Covilhã, uma cidade localizada no interior de Portugal.
Neste artigo recuperamos a história, receitas e as razões pela qual a bolota é associada a uma alimentação saudável.
Uma vida de bolota
Quem já esteve no montado alentejano recorda-se certamente das árvores que se estendem por quilómetros a perder de vista. A maioria pertence ao género Quercus (família das Fagáceas), como o carvalho, a azinheira e o sobreiro, a partir do qual se produz cortiça. Todas elas árvores que dão origem a frutos comestíveis: as bolotas. O sabor da bolota varia de espécie para espécie.
Pensa-se que a bolota faz parte da dieta desde o Paleolítico (ou Idade da Pedra), período durante o qual foram desenvolvidas as primeiras ferramentas, feitas de pedra lascada, e o homem era nómada.
Muito depois, a bolota foi a base da alimentação na Idade Média, antes da introdução do milho e da batata, alimentos que só chegaram à Europa após portugueses e espanhóis colonizarem a América Central e do Sul. Tornou-se um importante sustento em Portugal durante a II Guerra Mundial, uma vez que os cereais mais comuns, como o trigo, escasseavam e eram racionados. Talvez pela associação a tempos difíceis, a par da evolução tecnológica e agrícola que permitiu diversificar a ementa, a bolota começou a cair em desuso e a ser considerada um alimento “inferior”.
Espalhadas pelo chão do montado, o porco preto (ou porco ibérico) descobriu esta iguaria e tem tirado proveito dela desde então, sendo-lhe reconhecido o valor como alimento na produção de carne de qualidade superior.
Avivemos a memória para os benefícios da bolota, descobrindo como a podemos reintroduzir na alimentação humana.
Bolotas: nutricionalmente completas e versáteis
A bolota é um fruto seco. Apesar das bolotas de carvalho e de sobreiro também serem comestíveis, a variedade preferida tende a ser a de azinheira (Quercus ilex), por ser mais doce e mais suave ao paladar. Quem tem doença celíaca gostará de saber que este fruto não tem glúten, podendo ser incluída na alimentação em substituição da farinha de trigo, por exemplo.
Além do valor nutricional da bolota fresca e da respetiva farinha, rica em fibra e proteína, o seu perfil de lípidos (gorduras) assemelha-se ao do azeite, contendo ácidos gordos predominantemente monoinsaturados e polinsaturados. Ou seja, a bolota está recheada de gorduras “boas”.
O teor calórico da bolota é ainda menor do que o de outros frutos secos – tem cerca de 459 kcal por 100 g, enquanto 100 g de outros frutos secos contém cerca de 500 kcal a 700 kcal.
Relativamente aos micronutrientes da bolota, destacam-se o ferro, o cobre, o zinco e o manganês, juntamente com a provitamina A e vitamina E. Os compostos fenólicos deste fruto conferem-lhe um potencial efeito antioxidante.
Por todas estas características, é um alimento que se enquadra perfeitamente na dieta mediterrânica. Só falta mesmo passar à ação.
Como se comem bolotas?
Podem ser apreciadas cruas (com cuidado, pois são bastante duras), mas a versatilidade das bolotas surge quando cozinhadas. Podem ser assadas, tostadas ou cozidas e incorporadas em receitas como ingrediente principal ou secundário.
Alguma vez pesquisou por “receitas com bolota”? Não? Elas existem – e podem ser deliciosas.
A forma mais simples é assá-las como as castanhas. Basta remover o “chapéu” e fazer uma incisão na casca, para evitar que rebentem. Outra sugestão é fazer puré de bolotas, descascando-as por completo (com um quebra-nozes, por exemplo) e cozendo-as algumas vezes, em águas diferentes, para se livrar do sabor amargo que possam ter.
Moídas num processador e cozidas com a mesma quantidade de açúcar e um pouco de água, resultarão num delicioso doce de bolota para a sobremesa. Para empreitadas culinárias mais elaboradas, pode usá-las em farinha para fazer pães, broas, bolos, panquecas ou bolachas.
Por exemplo, a Associação Portuguesa de Celíacos sugere uma receita de scones com farinha de bolota.
Scones de bolota
Ingredientes
- 350 g farinha sem glúten
- Fermento sem glúten (de acordo com a indicação da farinha utilizada)
- 150 g farinha de bolota
- 500 g bebida láctea natural
- 2 colheres de sopa de açúcar amarelo
- 50 g manteiga sem sal
- 2 colheres de chá de sumo de limão
Preparação
- Derreta a manteiga e junte-a às farinhas e ao açúcar, incorporando tudo.
- À parte, misture o sumo de limão com a bebida láctea.
- Junte os dois preparados e mexa muito bem.
- Num tabuleiro forrado com papel vegetal, disponha a massa em pequenas porções.
- Leve ao forno pré-aquecido a 200 ºC durante 10 a 15 minutos.
Um projeto alentejano de valorização da bolota
Na Herdade do Freixo do Meio, no Alentejo, há um trabalho a ser desenvolvido desde 2005 para trazer a bolota de volta à ribalta (e à mesa). Além de se poder conhecer o projeto e visitar a área protegida do montado do Freixo do Meio, é possível experimentar infusão de bolota (sem cafeína, prepara-se como o café numa cafeteira italiana ou numa máquina de café de filtro), pão de bolota em forno de lenha ou farinha de bolota biológica. Há também bolachas artesanais de bolota e dois produtos bem inovadores: patê de bolota e hambúrgueres de bolota, ambos 100% vegetarianos e aptos para celíacos.
4 curiosidades sobre a bolota
- Na Grécia Antiga, a bolota era designada como o “alimento dos homens invencíveis”;
- Em Portugal, no século XX, era proibido apanhar bolota nas herdades do Alentejo – mas as pessoas mais pobres procuravam-nas como sustento, arriscando a prisão;
- Um estudo de 2015 concluiu que mais de metade das bolotas em Portugal são desperdiçadas;
- Para além de não requerer quaisquer práticas agrícolas, a produção de bolota não necessita de fertilizantes, pesticidas nem de uma quantidade elevada de água.